Edgar Silva

Edgar Silva - Presidenciais 2016

Um homem justo para Presidente

Entrevista ao jornal i

07 de Dezembro de 2015

Edgar Silva concedeu uma entrevista ao jornalista Humberto Costa, publicada na edição de 7 de Dezembro de 2015 do jornal i.

O candidato do PCP às eleições presidenciais e antigo padre madeirense fala de pobreza e admite que muitos católicos "sentirão que alguns dos seus valores têm na intervenção política do PCP uma exigência de verdade e de consequência ainda maior".

Como está a decorrer a pré-campanha das presidenciais?

Faltam-me três deslocações para concluir a primeira volta a Portugal e partir para uma segunda. Há uma dinâmica muito interessante. Uma indicação de apoios surpreendentes, de pessoas que, não sendo desta área PCP, nem gravitando nesta área de ligação à CDU, têm vindo, no conjunto dos distritos e regiões autónomas, a expressar apoio explícito; outras que, primeiro pela presença, e depois assumindo o compromisso de apoio à candidatura, dão uma dinâmica de alargamento dos círculos de comunicação e de contacto muito interessante. Tenho sido agradavelmente surpreendido pela forma como este processo tem vindo a crescer desde que foi anunciada a candidatura, e nos lugares mais recônditos, desde Bragança ou Vila Real até ao Algarve. Há também um grande empenhamento de todo o aparelho partidário, mas isso seria expectável.

Haverá ou não uma contaminação das legislativas na campanha das presidenciais?

Na fase da pré-campanha há dois momentos. um primeiro que tem a ver com a forma como o actual Presidente da República (PR) interveio no quadro político que estava criado, com a nova correlação de forças que se estabeleceu na Assembleia da República, revelando uma incorrecta compreensão da interdependência entre órgãos de soberania, tentando obstaculizar decisões e poderes que correspondiam, neste caso, à Assembleia da República. O actual PR tentou não só retardar mas, estou em crer, impedir mesmo uma solução de governo que não seria do seu agrado. Há um primeiro eixo, que é o do militante do PSD Cavaco Silva, a prevalecer sobre aquele que deveria ser o papel de Cavaco Silva Presidente da República. Isso obrigou a uma intervenção de alguns dos candidatos, de critica e demarcação do actual PR não só em relação à forma como se estava a interpor, desrespeitando as decisões de outro órgão de soberania e desrespeitando a Constituição em aspectos fundamentais, mas também a uma clarificação de posicionamentos quanto ao que deveria ser o correcto desempenho das verdadeiras incumbências do PR no quadro da Constituição.

E qual é o segundo momento?

Há um segundo momento depois da tomada de posse do novo governo no novo quadro político ou institucional. Daqui decorrem incidências muito directas e mais extensas e profundas relativamente à preparação das eleições presidenciais. Esta é a nova centralidade que ganham as eleições e todo o processo de preparação das eleições. A direita, que está de mãos dadas com Cavaco Silva, sofreu uma pesada derrota a 4 de Outubro, foi derrubada do poder e revelou um azedume até surpreendente. Por isso encara as próximas eleições presidenciais como a oportunidade para recuperar o que agora perdeu ou uma boa parcela do que agora perdeu. E, desse ponto de vista, a questão que é agora colocada para-as eleições presidenciais é que o combate passa por não permitir que as portas de esperança que agora se abriram, quanto ao novo rumo com justiça social, desenvolvimento e progresso para o país, sejam fechadas a 24 de Janeiro. A direita quer também fazer das eleições para a Presidência da República um ajuste de contas. É este o novo desafio para este acto eleitoral. Oxalá os valores de Abril e os valores da Constituição, a que está associada a minha candidatura, possam agora ser identificados pelo povo português como parte de um combate incontornável.

E como avalia os restantes candidatos?

Há um candidato identificado com a direita e a extrema-direita parlamentar, que é Marcelo Rebelo de Sousa Ele está umbilicalmente associado a todas as políticas que têm sido desenvolvidas nos últimos anos em Portugal, das piores e mais erradas políticas que têm sido impostas ao país. Foi presidente do PSD, está estruturalmente ligado a essa família política e também é o candidato sucessor directo de Cavaco Silva - não só porque está no Conselho de Estado, nomeado pelo sr. Presidente da República, mas porque sempre foi um aliado desta família política da direita e um aliado político do actual Presidente da Republica, um seu apoiante directo. Marcelo Rebelo de Sousa é, para a direita, o candidato a sucessor directo de Cavaco Silva. Marcelo Rebelo de Sousa apresenta-se nessa linha, como o candidato que procurará garantir esse ajuste de contas.

E não acha que as presidendais também vão depender do sucesso deste governo? Acho que não. Nem haverá tempo para isso, uma vez que as eleições serão já a 24 de Janeiro. Não estabeleceria relação directa entre o processo de evolução governativa que agora entrou em funções e a preparação das eleições.

Disse numa entrevista que espera deste novos aliados que suportam o actual governo que estejam à altura do desafio que lhes é colocado, designadamente um elevado sentido de responsabilidade e de Estado.

É prematuro fazer agora urna avaliação em função dos dados já disponíveis. Agora, do que é possível Identificar na sociedade portuguesa, há uma vontade de viragem, há uma vontade de que se estabeleça uma ruptura para que o país possa ter um novo rumo. Mas isto não pode corresponder a urna mera retórica política, tem de corresponder, a médio prazo e até já no curto prazo, a medidas legislativas concretas, à reconquista de direitos, à recuperação de direitos. E têm de ser sentidas de forma muito palpável e mensurável pelos portugueses. Isso é urgente. Oxalá isso aconteça e os órgãos de soberania, porque é competência quer do governo quer da Assembleia da República, possam responder a este anseio de esperança com medidas concretas capazes de materializar esse novo rumo.

Na tomada de posse do governo, o PR deu indicações de que poderia usar todos os seus poderes à excepção daquele que lhe está vedado, ode dissolver a AR. Um dos que detém é ode demissão do governo. Acha que é uma ameaça real?

O tempo e o modo da declaração do PR soaram a algo muito próximo de uma pressão chantagista. No entanto, tem o mérito de contribuir para o avivar da memória, mas também constitui uma oportunidade para uma crítica ao PR.

Aviva a memória...?

Aviva a memória para alguns que não tenham isso bem presente. O PR não tem apenas o papel de quem exerce uma magistratura de influência, que é normalmente o papel para que é remetido, reportando-se o papel do PR aos seus poderes de influência na sociedade portuguesa. Mas essa é apenas uma das dimensões das competências do PR. O Presidente tem poderes de decisão. E a intervenção do PR fez-nos lembrar desses poderes de decisão, designadamente o poder de veto a processos legislativos, de declaração de inconstitucionalidade ou até de ilegalidade de diplomas, que conveniente e estranhamente Cavaco Silva nunca quis usar em relação ao governo do PSD/CDS. Aí, o PR limitou-se ao papel de rainha de Inglaterra e de forma conveniente, não ingenuamente. Foi co-responsável pelo essencial das decisões desse governo, quando poderia ter exercido os seus poderes. Não o fez, muitas vezes, por um ideário de conivência, por identificação política, muitas vezes de forma negligente e por omissão. Objectivamente, isso é verificável no simples facto de, neste período de legislatura, o Tribunal Constitucional por 13 vezes ter declarado a inconstitucionalidade de diplomas, um número inédito de situações, diplomas que foram todos eles promulgados pelo PR e que corresponderam a violações grosseiras da Constituição. O PR poderia ou deveria, em cada um desses casos, no quadro dos seus poderes, vetar alguns desses diplomas, ou poderia ter requerido a utilização do mecanismo de verificação da inconstitucionalidade de parte, se não da totalidade, desses diplomas, e não o fez. O que é estranho é que o PR só agora, quando há uma solução de governo que tudo fez para retardar, impedir ou inviabilizar, venha invocar os poderes que a Constituição prevê, mas que não quis usar quando o governo era da sua área de identificação.

E os poderes do PR são suficientes?

No actual quadro constitucional, a grande questão que se coloca é que os diferentes órgãos de soberania são chamados a um exercício de interdependência no cumprimento dos seus poderes e das suas competências, e a grande questão que se coloca não é urna querela que justifica mais ou menos poderes. A grande questão é ao serviço de quem o PR se coloca, ao serviço de quem exerce os seus poderes e competências definidos na Constituição.

E ao serviço de quem têm sido exercidos os poderes deste Presidente?

Vale a pena colocar este problema porque tem actualidade. Não é num quadro de reivindicação de mais poderes, é sobretudo a questão do papel do PR O actual PR, na forma como exerceu os seus poderes, foi sempre secundarizando a defesa do interesse nacional, secundarizando o seu maior sentido de responsabilidade que decorre da Constituição - a defesa da independência e do interesse nacional -, mas a maior parte das vezes procurando sempre tudo fazer para agradar aos especuladores, aos agiotas, aos grandes interesses financeiros. O grande problema é que o PR não os exerceu, por exemplo, em relação a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, aos direitos de quem trabalha, em relação à política económica, aos deveres do Estado no apoio preferencial à pequena e média agricultura, em relação ao reforço da capacidade produtiva e nacional para defender o tecido produtivo, a capacidade produtiva nacional de gerar mais riqueza. Relativamente ao exercício dos seus poderes, o PR, quando os exerceu ou por omissão ou de forma negligente, não exerceu os seus poderes. Boa parte das vezes em que os exerceu foi para satisfazer clientelas, grandes interesses económicos e, com frequência, à revelia do interesse nacional. Essa é que é a grande questão.

Relativamente à nova realidade política na AR e à solução governativa gerada, acha que nada voltará a ser como era?

Há efectivamente um quadro político e institucional inédito. E uma nova oportunidade, há um conjunto de novas possibilidades. Como candidato à Presidência da República, sem poder nem querer ter qualquer tipo de intromissão naqueles que são os poderes e competências dos parlamentares, do parlamento e do próprio governo, o que espero, como cidadão e também como candidato empenhado na defesa do interesse nacional, é que não se defraude este sentir do povo português, esta oportunidade que está criada, este tempo, esta esperança. Este é o tempo de um tempo novo e espero que os compromissos que foram publicamente assumidos se materializem o mais rápido possível, sob pena de entrarmos num processo de descrença na democracia e até de retrocesso político, para além das implicações sociais e económicas. Seria profundamente penalizador para o futuro da democracia se aos compromissos que foram assumidos não vier a corresponder uma capacidade de decisão e de materialização imediata de tudo quanto foi anunciado.

Com qual dos ex-presidentes mais se identifica?

Não há nenhum pelo qual tenha uma particular predilecção. Claramente, o actual PR, por estar associado a uma situação tão brutal de ofensiva contra o interesse nacional, por ter sido co-responsável por toda uma ofensiva que gerou tanta destruição, que fez tanta desgraça ao país e às portuguesas e portugueses, é aquele que sai com uma carga de negatividade muito marcada Em relação aos outros Presidentes, há aspectos mais de ordem conjuntural e política que levarão a apreciação de ordem subjectiva muito variável, mas sobre os anteriores PR não faria nenhum juízo político nem de valor no sentido de poder apontar algum em particular.

José Saramago, no livro «Levantado do Chão», traça uma realidade de pobreza extrema reportando-se ao Alentejo. Se se reportasse à Madeira, o quadro seria muito diferente?

O problema da pobreza é um dos mais graves problemas políticos que se coloca ao país. E transversal a toda a sociedade portuguesa, não tem sido visto como um problema social e não tem sido encarado como um problema político. A percepção que a generalidade das pessoas tem da sociedade portuguesa, relativamente à pobreza, é ao nível de uma visão individualizada, de uma relação interpessoal. Têm uma concepção demasiado individualizada do pobre, esquecendo o problema social da pobreza. Ela existe, desde logo, como o maior problema que envolve cerca de 3 milhões de portugueses. Portanto, 28% da população vivem em situação de profunda pobreza e um país que tem praticamente um terço da sua população em situação de pobreza relativa ou pobreza absoluta tem um gravíssimo problema social, e que tem a ver com cai isas estruturais muito profundas, tem a ver com um círculo vicioso. Há uma pobreza estrutural hereditária em que os pobres geram pobreza associada a analfabetismo, baixa qualificação e, depois, associada a insuficiência de apoios sociais e a baixos salários. Estes são os eixos das causas estruturais da pobreza. E, para além desta pobreza tradicional, quase hereditária, na qual não se tem conseguido intervir para quebrar esse círculo vicioso, há novas expressões que ganham hoje uma extensão maior que a torna absoluta Os novos pobres são aqueles que, apesar de estarem a trabalhar, de terem um salário, continuam pobres.

Refere-se aos baixos salários?

Dos pobres em Portugal, 30% têm um trabalho e recebem um salário. Cerca de meio milhão de portugueses recebe o salário mínimo como forma de subsistência e essa é uma das causas estruturais da pobreza. Nesta forma de encarar as suas causas estruturais, tem sido difícil à sociedade portuguesa percebê- lo como problema social, mas sobretudo como problema político. Existem responsáveis políticos que têm alimentado este círculo vicioso da pobreza e importa encarar este como um grande problema que requer a definição de objectivos de justiça social, como grande prioridade para o futuro do país. Para isso são necessárias medidas muito claras, muito corajosas, muito audazes para agir sobre estas causas sociais.

Assistência social?

A tendência, cada vez mais, é de uma certa caridade laica, já não tanto a da senhora da Conferência de S. Vicente de Paulo, lá nas paróquias, que tinha o seu pobrezinho há 80 anos e que o mantinha na sua pobreza. Hoje há um assisfencialismo laico que, ao mesmo tempo que destrói o edificio da Segurança Social, como instrumento de distribuição da riqueza nacional, cria, em nome de uma determinada economia social, de um certo empreendedorismo social, toda uma economia que explora o pobre e o mantém na sua pobreza. Essa é uma forma perversa de intervenção que visa não afirmar direitos nem reconhecer direitos, mas manter o pobre numa atitude de subserviência, numa atitude de servidão, perpetuando-o numa situação de marginalidade. Este é o grande problema que se coloca ao país e como grande desafio: a definição de objectivos de justiça social devia ser o grande desígnio nacional.

Mas essa realidade é mais evidente na Madeira?

Esta realidade da pobreza conhecia na Madeira, mas também aqui, quando vivi no Prior Velho, no bairro da Curraleira. E fui também confrontado com a pobreza urbana, por exemplo ontem, quando estive de visita a Ponta Delgada, nos Açores, ou quando estive em Mirandela, ou na periferia de Setúbal, junto à Lisnave, nas novas praças de jorna, onde estão centenas e centenas de trabalhadores contratados por um subempreiteiro para virem trabalhar umas horas ou um dia, já não por uma côdea de pão, mas uma pequena migalha para poderem sobreviver. Esta realidade, que tem expressões tremendas na sociedade portuguesa, é tão profunda e tem sido encarada de uma forma perversa no quadro político e ideológico do pobrezinho, do coitadinho, e não como um problema político gravíssimo, um problema de direitos humanos. Mas é um problema político que requer uma grande mobilização de meios, de vontades. É o grande desígnio nacional. É de prioridade absoluta uma política de justiça social, o ideário da justiça social. Portanto, a sociedade portuguesa está marcada por desesperanças profundas, por pessoas que desacreditaram na democracia. É verdade que na Madeira conheci essas realidades em deter-minados contextos, mas onde, de forma mais incisiva, fui provocado para esta realidade até foi aqui, na periferia da cidade de Lisboa.

Considera actual o retrato feito por Saramago em «Levantado do Chão»?

Desde os textos do Saramago à realidade que hoje vai sendo descrita, a pobreza não tem vindo a diminuir, pelo contrário, tem vindo a ganhar outros contornos. Essa pobreza mais descalça, hoje com novos rostos e novas expressões, mas devido a opções de governação, essa pobreza material e moral descrita por Saramago não se tornou menos penosa. Bem pelo contrário, tornou- se mais brutal e mais violenta, não só porque o universo dos mais pobres é um universo de maior abandono, mas porque, escandalosamente, aqueles que são mais ricos na nossa sociedade tornaram-se ainda mais ricos. Também por isso, a situação tornou-se obscena, violenta e brutal. Somos o país da União Europeia onde a desigualdade no acesso ao rendimento é maior.

Sentiu que foi mais profícuo o seu combate à pobreza como sacerdote ou como político comunista?

São níveis completamente diferentes, um como padre católico e hoje num contexto diferente de intervenção social e política. Mas diria que agora sinto que o combate pela justiça social se torna obrigatoriamente mais consequente Ganhou uma dimensão operativa muito maior, muito mais incisiva, mais exigente. E vê incompatibilidade entre o catolicismo e o comunismo? Existem milhares de comunistas em Portugal. Uns serão agnósticos, outros serão ateus, outros evangélicos, alguns poderão ser católicos. Não há incompatibilidade nenhuma entre ser militante comunista e os níveis de opção de consciência relativainente a determinados valores éticos, morais e religiosos. Não há incompatibilidade. É óbvio que não há um partido dos católicos, existirão católicos em todos os partidos. Alguns dos católicos, sendo também comunistas, certamente não sentirão qualquer tipo de incompatibilidade. Talvez se possa até dizer que muitos sentirão que alguns dos seus valores têm, na intervenção política do PCP, uma exigência de verdade e de consequência ainda maior.

Por qual dos paraísos mais lutaria, pelo terreno ou pelo celestial?

O que é preciso é lutar contra a doença da resignação e de algum fatalismo. É preciso combater a alienação face a um prometido além, mas também combater a reignação relativamente a todos aqueles que se sentem instalados num aquém onde é tanta a injustiça, tanta a desigualdade e onde tanta gente está perder o sentido do intolerável. E não sei o que é pior. Não se trata de fa7Pr um juízo de valor, mas o que sinto é que é importante combater todos esses fatalismos ou formas de resignação que resultam de um deixar-se alienar, à espera de algo que há de vir. Mas não menos grave é perder-se no presente, no aquém, ser tal a alienação que se perdeu o sentido da injustiça, do intolerável, o sentido da indignação. O grande combate é pela exigência de transformação da história hoje e aqui. O desafio ético que importa considerar é o de transformar a história aqui e agora.